No dia nacional do livro, o presente para o leitor foi prejuízo | Reflexões sobre a Lei Cortez
05 novembroTenho visto algumas pessoas começando a dar opiniões sobre o assunto, mas acho que o tema deveria tomar maiores proporções, tornando o debate mais amplo e pontuando na prática, como isso afetará o consumidor final.
O que diz a Lei Cortez
Vou pontuar o óbvio, não sou da área jurídica, mas li o texto final do projeto de lei do senado e você pode conferir o texto na íntegra clicando aqui . O texto começa com o objetivo da lei em "instituir a política de incentivo ao mercado editorial e livreiro, regulamenta o preço de capa e políticas de descontos durante o primeiro ano de lançamentos editoriais comerciais." Nesse ponto já deixa bem nítido a quem servirá a implementação da lei. Será que é pensando em nós, leitores que com muito custo tem mantido o acesso à informação, educação e lazer. Ou para empresários que não estão conseguindo competir com multinacionais como a Amazon?
No artigo 1º fica estabelecido que o preço de capa será fixo no primeiro ano de lançamento para todos os formatos, ou seja, e-books, quadrinhos, mangás... tudo ficara com o preço de capa congelado por um ano. Segundo o senado, isso vai fomentar o livro como bem cultural, garantir oferta acessível ao grande público, mais pontos de venda, diversidade de títulos e disponibilidade em todo o território nacional.
Em uma realidade ideal, talvez funcionasse dessa maneira, mas na realidade de muitos brasileiros, o que acontecerá está longe de ser um fomento do livro como bem cultural, a menos que a gente admita que faz parte do projeto público a elitização da cultura ao distanciar bens culturais de populações em vulnerabilidade socioeconômica.
Também sabemos que a presença de livrarias sempre foi escassa fora dos grandes centros urbanos. Eu fui a leitora que morava em cidade pequena e não tinha fácil acesso aos livros, e reconheço meus privilégios por encontrar nos meus pais, incentivo à leitura. Uma vez ao ano, ia para a capital e comprava livros que eram lidos, relidos e emprestados entre amigos. Em uma época onde eu me deslocava por bons 118km para comprar livros em livrarias como Saraiva e Cultura, os preços eram exorbitantes! E comprar pela internet significava pagar ao menos metade do valor do livro em frete, afinal, o frete mais barato ou totalmente grátis muitas vezes é destinado apenas para regiões do sul e sudeste, né?
A grande pergunta que fica é: como congelar o preço dos livros, deixando apenas a possibilidade de 10% de desconto em cima do valor de capa, vai facilitar o acesso da população aos livros?
E apesar da minha óbvia revolta, não vim defender milionários e bilionários. A Amazon tem promovido a venda de livros com valores abaixo do que vemos em livrarias, e diversos fatores contribuem para isso, desde optar por lucrar com outros produtos para compensar a margem de prejuízo com os livros em promoção, até a opção do frete grátis e cupons. E do outro lado temos milionários nacionais, donos de livrarias tradicionais que obviamente tem custos para manter o local físico e funcionários, mas são empresários de um recorte de classe social completamente diferente de quem será afetado negativamente com a implementação da lei. Então para ajudar os milionários brasileiros a sobreviver numa competição com um bilionário norte-americano, a solução do Senado será dificultar o acesso aos livros?
É interessante mencionar que no capítulo cinco, citam um artigo em que é de responsabilidade dos Estados e Municípios criar e executar projetos que incentive a leitura. Nessa mesma lei eles dizem que esse congelamento vai beneficiar a população, e no fim do texto termina apontando a responsabilidade de outros setores públicos em fornecer facilitação aos livros. Ou seja, em âmbito federal, perdemos o fácil acesso aos livros, eles jogam a responsabilidade para os âmbitos estaduais e municipais e seguimos sem livros.
O projeto-lei ainda cita que esse congelamento será bom para garantir uma bibliodiversidade. Dentro dessa discussão de órgãos do estado e município ficarem responsáveis por suprir uma demanda e necessidade advindas dessa lei, teremos mesmo uma bibliodiversidade? Em um país que infelizmente ainda vemos acontecer censura de livros? Alguns exemplos de livros censurados no Brasil na última década: vingadores: A Cruzada das Crianças (motivo, conteúdo LGBTQIAPN+), O Avesso da Pele (motivo, abordar temas como racismo e violência), Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios (motivo, consideraram pornográfico para alunos prestando pré-vestibular), Meninos sem Pátria (motivo, abordar a ditadura militar) e Fahrenheit 451 (motivo, questionar repressão do governo). Exemplos como esse são preocupantes em vários sentidos, desde um controle no que será disponibilizado, até desemborcar na questão do que seria uma leitura válida.
Exemplos fora do país
Esse é um dos tópicos para quem defende que essa lei será positiva para o leitor. O argumento "mas na frança deu certo" é extremamente simplista. Vamos comparar o Brasil com um país de primeiro mundo? Com uma formação histórica, social e cultural completamente diferente? Vamos comparar os leitores brasileiros que vivem numa escala de trabalho 6x1 enquanto os franceses fazem 35 horas semanais com férias mais frequentes que a nossa anual? Em um país em que ler é um passatempo que permeia entre os privilégios de ter dinheiro e tempo, vamos passar pelo retrocesso de aquisição de livros porque na França deu certo e existe a possibilidade, de a médio e longo prazo, percebermos a mudança de forma positiva.Sempre se pergunte a quem serve o propósito de afastar a maioria da população do acesso à educação e cultura.
1 comments
Olá, Vaneza,
ResponderExcluirAcho importantíssimo você ter trazido esse assunto! Eu mesma não estava sabendo disso, até porque tenho evitado ver notícias pra não pirar.
Nos últimos anos o livro já havia sido encarecido porque o presidente da época disse que só pessoas ricas liam livros então era certo aumentar impostos.
A cada dia que passa eu fico mais descontente com a situação atual. A educação é a base de tudo e é por essa razão que eles querem os jovens mais e mais ignorantes, para não questionarem.
Abraços!
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