­
No dia nacional do livro, o presente para o leitor foi prejuízo | Reflexões sobre a Lei Cortez - Garota do 330

No dia nacional do livro, o presente para o leitor foi prejuízo | Reflexões sobre a Lei Cortez

Tenho visto algumas pessoas começando a dar opiniões sobre o assunto, mas acho que o tema deveria tomar maiores proporções, tornando o debat...

Tenho visto algumas pessoas começando a dar opiniões sobre o assunto, mas acho que o tema deveria tomar maiores proporções, tornando o debate mais amplo e pontuando na prática, como isso afetará o consumidor final.

O que diz a Lei Cortez

Vou pontuar o óbvio, não sou da área jurídica, mas li o texto final do projeto de lei do senado e você pode conferir o texto na íntegra  clicando aqui . O texto começa com o objetivo da lei em "instituir a política de incentivo ao mercado editorial e livreiro, regulamenta o preço de capa e políticas de descontos durante o primeiro ano de lançamentos editoriais comerciais." Nesse ponto já deixa bem nítido a quem servirá a implementação da lei. Será que é pensando em nós, leitores que com muito custo tem mantido o acesso à informação, educação e lazer. Ou para empresários que não estão conseguindo competir com multinacionais como a Amazon?

No artigo 1º fica estabelecido que o preço de capa será fixo no primeiro ano de lançamento para todos os formatos, ou seja, e-books, quadrinhos, mangás... tudo ficara com o preço de capa congelado por um ano. Segundo o senado, isso vai fomentar o livro como bem cultural, garantir oferta acessível ao grande público, mais pontos de venda, diversidade de títulos e disponibilidade em todo o território nacional. 

Em uma realidade ideal, talvez funcionasse dessa maneira, mas na realidade de muitos brasileiros, o que acontecerá está longe de ser um fomento do livro como bem cultural, a menos que a gente admita que faz parte do projeto público a elitização da cultura ao distanciar bens culturais de populações em vulnerabilidade socioeconômica.

Também sabemos que a presença de livrarias sempre foi escassa fora dos grandes centros urbanos. Eu fui a leitora que morava em cidade pequena e não tinha fácil acesso aos livros, e reconheço meus privilégios por encontrar nos meus pais, incentivo à leitura. Uma vez ao ano, ia para a capital e comprava livros que eram lidos, relidos e emprestados entre amigos. Em uma época onde eu me deslocava por bons 118km para comprar livros em livrarias como Saraiva e Cultura, os preços eram exorbitantes! E comprar pela internet significava pagar ao menos metade do valor do livro em frete, afinal, o frete mais barato ou totalmente grátis muitas vezes é destinado apenas para regiões do sul e sudeste, né?

A grande pergunta que fica é: como congelar o preço dos livros, deixando apenas a possibilidade de 10% de desconto em cima do valor de capa, vai facilitar o acesso da população aos livros?

E apesar da minha óbvia revolta, não vim defender milionários e bilionários. A Amazon tem promovido a venda de livros com valores abaixo do que vemos em livrarias, e diversos fatores contribuem para isso, desde optar por lucrar com outros produtos para compensar a margem de prejuízo com os livros em promoção, até a opção do frete grátis e cupons. E do outro lado temos milionários nacionais, donos de livrarias tradicionais que obviamente tem custos para manter o local físico e funcionários, mas são empresários de um recorte de classe social completamente diferente de quem será afetado negativamente com a implementação da lei. Então para ajudar os milionários brasileiros a sobreviver numa competição com um bilionário norte-americano, a solução do Senado será dificultar o acesso aos livros?

É interessante mencionar que no capítulo cinco, citam um artigo em que é de responsabilidade dos Estados e Municípios criar e executar projetos que incentive a leitura. Nessa mesma lei eles dizem que esse congelamento vai beneficiar a população, e no fim do texto termina apontando a responsabilidade de outros setores públicos em fornecer facilitação aos livros. Ou seja, em âmbito federal, perdemos o fácil acesso aos livros, eles jogam a responsabilidade para os âmbitos estaduais e municipais e seguimos sem livros.

O projeto-lei ainda cita que esse congelamento será bom para garantir uma bibliodiversidade. Dentro dessa discussão de órgãos do estado e município ficarem responsáveis por suprir uma demanda e necessidade advindas dessa lei, teremos mesmo uma bibliodiversidade? Em um país que infelizmente ainda vemos acontecer censura de livros? Alguns exemplos de livros censurados no Brasil na última década: vingadores: A Cruzada das Crianças (motivo, conteúdo LGBTQIAPN+), O Avesso da Pele (motivo, abordar temas como racismo e violência), Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios (motivo, consideraram pornográfico para alunos prestando pré-vestibular), Meninos sem Pátria (motivo, abordar a ditadura militar) e Fahrenheit 451 (motivo, questionar repressão do governo). Exemplos como esse são preocupantes em vários sentidos, desde um controle no que será disponibilizado, até desemborcar na questão do que seria uma leitura válida.

Exemplos fora do país

Esse é um dos tópicos para quem defende que essa lei será positiva para o leitor. O argumento "mas na frança deu certo" é extremamente simplista. Vamos comparar o Brasil com um país de primeiro mundo? Com uma formação histórica, social e cultural completamente diferente? Vamos comparar os leitores brasileiros que vivem numa escala de trabalho 6x1 enquanto os franceses fazem 35 horas semanais com férias mais frequentes que a nossa anual? Em um país em que ler é um passatempo que permeia entre os privilégios de ter dinheiro e tempo, vamos passar pelo retrocesso de aquisição de livros porque na França deu certo e existe a possibilidade, de a médio e longo prazo, percebermos a mudança de forma positiva.


Sempre se pergunte a quem serve o propósito de afastar a maioria da população do acesso à educação e cultura.

Leia Também

11 comments

  1. Olá, Vaneza,

    Acho importantíssimo você ter trazido esse assunto! Eu mesma não estava sabendo disso, até porque tenho evitado ver notícias pra não pirar.
    Nos últimos anos o livro já havia sido encarecido porque o presidente da época disse que só pessoas ricas liam livros então era certo aumentar impostos.
    A cada dia que passa eu fico mais descontente com a situação atual. A educação é a base de tudo e é por essa razão que eles querem os jovens mais e mais ignorantes, para não questionarem.
    Abraços!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Oi Jessica! Eu fiquei meio resistente em pesquisar sobre o assunto, mas não aguentei xD Precisei passar essa raiva e indignação, e não contente trouxe para vocês ficarem indignados comigo. Vamos torcer para que o projeto não seja aprovado, e caso aconteça, teremos que ver como vamos contornar essa situação.

      Excluir
  2. Oi! Eu também estava meio resistente para ir atrás desse assunto, mas acabei pesquisando e fiquei revoltada. Dessa forma será impossível ler lançamentos, alguns hoje em dia saindo por quase R$ 200,00. Eu sou sincera, compro sempre que está na promoção, fico sempre de olhos nos especiais da Amazon para obter descontos e cupons e agora, se essa lei infeliz for aprovada, vou ter que esperar um ano para conferir as novidades. Não está de forma alguma incentivando a leitura.
    Bjos!!
    Moonlight Books

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Oi Cida! Se realmente o projeto for aprovado, enfrentaremos grandes dificuldades pela frente. E com a reeleição do Trump, vários livros estão sendo censurados, quem consome bastante da literatura de lá pode esperar mais dificuldade ainda na circulação de livros. Tempos sombrios para as fãs de fantasia e distopia :(

      Excluir
  3. Oi!
    Não cheguei a parar para conferir a fundo sobre esse projeto de lei e ela vai bem contra soluções que o pessoal está tendo para incentivar a cultura né? Por exemplo ela vai para um lado totalmente diferente da proposta das semanas que o cinema fica por 12 reais a entrada, valendo para qualquer filme e faz um sucesso danado.

    Beijão
    https://deiumjeito.blogspot.com/

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Oi Giovana! Sim!! Essa semana do cinema é um exemplo muito legal sobre a democratização e acesso aos cinemas, e perceba que só quem se beneficia é quem vive nos grandes centros onde já existem cinemas, cidades do interior seguem sem políticas interessantes para o acesso à cultura. Vamos torcer para o projeto não ser aprovado.

      Excluir
  4. Oi Nana! A questão da pirataria de nacionais é uma coisa bem grande. Enquanto eu escrevia essa publicação fiquei pensando sobre como esse projeto afetaria os autores nacionais, principalmente os independentes. Imagina os autores que se apoiam em eventos de promoções de livro para que as obras tenham maior circulação e consequentemente novos leitores? Essa galera que publica no KDP da Amazon sem poder fazer promoções... Serão dias difíceis para os amantes dos livros </3

    ResponderExcluir
  5. Oie
    Essa lei é completamente revoltante, no lugar de estudar deixar o preço do livro mais acessível, como tentar diminuir o preço da matérias primas ou criação de mais vales culturas, eles vão querer aderir a algo que deu certo na França.

    Você mencionou "Meninos sem pátria " no seu artigo, eu lembro que quando li esse livro, havia um comentário sobre o fato da França ter mais livrarias do que o Brasil, pois é um pais que tem o hábito de ler e uma renda diferente daqui .
    Eu também fico pensando em como isso irá prejudicar os autores nacionais independentes, como eles irão fazer as promoções ? Como isso ira influenciar eventos como o #ExplodaseuKindle ?

    Você falou tudo!

    Abraços
    Meu mundinho quase perfeito

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Oi Babi!! Essa questão de baratear a cadeia de produção do livro e pensar em novos projetos de fomento a leitura são possibilidades incríveis que não colocaria o leitor no prejuízo. Enquanto escrevia essa publicação também pensei nessa questão dos autores nacionais e com certeza teremos impactos negativos. O exploda seu Kindle é um evento que seria diretamente impactado com a adesão do projeto, pois também são livros que recebem um ISBN, logo fazem parte desse prazo de um ano. Ficaríamos restritos a desfrutar de promoções apenas de livros anteriores ao projeto, e é importante frisar que novas edições de livros antigos, recebem um ISBN novo, logo, também será afetado pelo projeto. Eu fico muito triste em ver o pessoal do bookverso mais preocupado com censura de livro nos Estados Unidos do que divulgar essa baixaria que estão querendo fazer com o mercado editorial brasileiro.

      Excluir
  6. Vaneza, confesso que estou por fora do assunto, então seu post foi uma ótima introdução! Vou pesquisar mais a respeito.

    Sábado mesmo fui conhecer uma livraria independente e quase caí pra trás quando fui passar o livro no caixa: Relato de um certo oriente, do Hatum, 89,90 reais. Tá que o filme baseado no livro está para ser lançado, mas 90 reais num livro é complicadíssimo. Eu sou uma grande defensora de sebos, mas isso só funciona pra quem tem acesso a eles -- na minha cidade natal não tem uma livraria, quem dirá um sebo. E a Estante Virtual, que costumava ser referência, hoje está com uns fretes exorbitantes, que deixam o livro mais caro do que se você fosse comprar novo, infelizmente. E mesmo se todo mundo tivesse acesso a um sebo, como fica o autor que está publicando hoje e agora, a editora independente, a tradução nova?...

    Também acho que uma coisa que influência é que aqui no Brasil leitura é encarado como um hobby e se desencoraja a ideia de que literatura exercita a mente, forma o indivíduo como sujeito, ajuda a formar uma outra visão de mundo, enfim... não é só um passatempo. Claro que tem muito interesse envolvido em manter essa mentalidade, mas se eu começar a pensar muito nisso, fico triste... E arrisco dizer que na França, além dos motivos que você citou, eles provavelmente também têm uma outra visão sobre literatura. Quantos clássicos mundiais são franceses?

    Vaneza, obrigada pelo post, vou ficar pensando nele por um tempão ainda.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Oi! Fico feliz que tenha gostado da publicação, foi um momento de revolta que precisava ganhar forma e espaço na internet xD

      Eu adoro visitar livrarias e sebos, sempre optei por comprar nesses lugares, mas infelizmente sou apenas uma consumidora baixa renda que precisa buscar por preços acessíveis. Não tenho memória de ver livros baratos sendo vendidos em livrarias. Fui a adolescente que amava ler e lembro que há uns quinze anos eu cheguei a dar 50/60 reais em um livro, e o salário mínimo da época era R$ 465,00. Essas livrarias grandes nunca tiveram a proposta de ser acessível, e sebos não são uma realidade em todas as cidades do país. Já comprei muito na Estante Virtual e é triste ver que também estamos perdendo mais essa possibilidade. Vai ficar cada vez mais difícil de adquirir livros novos, os autores nacionais que começaram a ocupar um espaço legal no mercado serão afetados e vamos de sair prejudicados Ç-Ç

      P.S: Quero muito conhecer as obras do Milton Hatoum

      Excluir

Sinta-se livre para deixar um comentário! Caso não apareça a caixa de comentário, recomendo abrir a página no formato web/desktop