Reflexões sobre o termo romantasia
12 março
Como usuária infelizmente assídua das redes sociais, tenho me deparado com alguns vídeos que me trouxeram a necessidade de refletir sobre o termo romantasia, e cheguei a conclusão de que talvez nós devêssemos conversar mais sobre isso. Esse termo ficou popular nas bookredes, e virou o rotulo para resumir livros de fantasia que desenvolve os interesses românticos. Com uma crescente publicação de livros que trazem esses dois temas, o rotulo se estabeleceu e hoje vemos uma consagração do termo romantasia.
Apesar da recente popularização do termo, histórias envolvendo seres da fantasia e pitadas de romance não são exatamente uma novidade no mercado. Se você já era um leitor entre os anos 2000 até 2015, deve ter visto vários livros com vampiros, lobos e diversos outros seres fantásticos. Naquela época era comum chamar esses livros de monster romance, e hoje em dia nem vamos entrar nessa história de monster romance ou vamos parar entre minotauros e dragões com teor sexual, como o grande viral "A mangueira do bombeiro: romance paranormal gay com gravidez masculina de dragão". A maioria das histórias dos anos dois mil até o fim da primeira década traziam seres fantásticos, mas dentro do nosso mundo, num recorte temporal contemporâneo. Talvez essa aproximação com o nosso mundo estruturasse uma barreira, separando esses livros do que é comumente entendido como fantasia enquanto gênero literário.
Para organizar melhor a linha de raciocínio, eu busquei por definições do que seria fantasia e me deparei com as seguintes informações:
- A fantasia é aquela que carrega como característica mais forte uso de magia e elementos sobrenaturais em sua narrativa, cuja fuga da realidade é, geralmente, explicada por intervenções de divindades, magia, forças ocultas ou sobrenaturais. Revista The Bard
- Imaginação criadora; ficção. Coisa que não tem existência real, mas apenas ideal. Dicionário Online de Português
- Gênero da ficção em que geralmente se utilizam fenômenos sobrenaturais, mágicos e outros como elementos primários do enredo, tema ou configuração. Wikipédia
A vastidão desse gênero literário cria subcategorias que mesclam essa ideia central da fantasia e outros gêneros literários, resultando em obras com características específicas de narrativa e desenvolvimento de mundo. Alguns exemplos de subcategorias são:
Baixa fantasia: Mesclando habilidades do universo fantástico com o mundo real de forma mais rara e sutil entre os personagens. Exemplo: O lar da Srta. Peregrine para crianças peculiares do Ransom Riggs.
Alta fantasia: Criação de mundo complexo com regras próprias, envolve geralmente a jornada do herói e questões políticas. Exemplo: Senhor dos Anéis do J. R. R. Tolkien.
Fantasia urbana: Diferente da baixa fantasia, a parte fantástica ou mágica é de amplo conhecimento no universo e coexiste com a sociedade moderna, o plano de fundo é sempre alguma cidade grande, podendo ser real ou fictícia. Exemplo: Os instrumentos mortais da Cassandra Clare.
Fantasia histórica: Trabalha eventos históricos não fictícios com elementos característicos da fantasia. Exemplo: A guerra da papoula da R. F. Kuang.
Realismo mágico: Originado na América Latina, o realismo mágico mescla coisas fantásticas com o cotidiano de forma sutil, como se a realidade sempre fosse exatamente daquela forma. Geralmente aborda questões históricas, sociais e políticas. Exemplo: Cem anos de Solidão do Gabriel García Márquez.
Fantasia sombria: Incorpora no enredo elementos mais melancólicos e sombrios, usando do horror, violência e mistério para transmitir a sensação de sombrio. Ao contrário da alta fantasia, é mais comum ter histórias com anti-heróis e o famoso personagem moralmente cinza que vive dilemas sombrios em uma sociedade corrompida. Exemplo: As Crônicas de Gelo e Fogo do George R.R. Martin.
Conto de fadas: Tem o enredo apoiado em elementos mágicos, seres fantásticos e uma luta do bem contra o mal. Começam com os clássicos infantis, mas com o tempo passaram a ganhar releituras mais sombrias e modernas. Exemplo: Contos dos Irmãos Grimm e Conto de fadas do autor Stephen King.
Fantasia mitológica: Se inspira em mitologias de diversas culturas para construir o enredo que geralmente envolvem conflitos entre humanos e as divindades da mitologia. Exemplo: As Crônicas dos Kane do Rick Riordan e Filhos de sangue e osso da Tomi Adeyemi.
Fantasia científica: Mistura ciência e magia para explicar eventos sobrenaturais com lógica e teorias científicas. Pode envolver histórias em um contexto com avanço tecnológico coexistindo com fenômenos sobrenaturais. Exemplos: Kindred da Octavia Butler e Mistborn do Brendon Sanderson.
Fantasia Steampunk: Em uma visão de passado alternativo, mescla elementos mágicos e sobrenaturais com o contexto da revolução industrial no século XIX e XX. As histórias vão envolver máquinas tecnológicas da era vitoriana e magia. Exemplo: O circo mecânico Tresaulti da Genevieve Valentine e Mestre dos Djinns do P. Djèlí Clark.
A romantasia se estabelece enquanto uma dessas subcategorias, e com isso surgem alguns debates nas redes sociais, entre eles as críticas sobre o romance com a presença de conteúdo com teor sexual, e os questionamentos se essas histórias seriam fantasia ou não. Em um primeiro momento eu refleti sobre essa discussão, lembrei como sempre temos pessoas que criam parâmetros de validade para leituras, e de repente estamos naquele discurso totalmente elitista e eurocêntrico de qual tipo de literatura é válida, e como apenas a literatura clássica tem valor. Ao observar os livros de romantasia dentro dessas críticas percebi outra questão. O que livros como Corte de espinhos e rosas, Quarta asa, Guerra da papoula e tantos outros livros de romantasia criticados tem em comum? São livros escritos por mulheres. Grande parte desses livros retratam uma protagonista feminina desenvolvendo a jornada do herói. Mesmo que o romance faça parte da história, não rouba (ou não deveria roubar) o protagonismo feminino da narrativa.
Por que livros de fantasia escritos por mulheres causaria tanto desconforto? O ponto de vista feminino de uma jornada diverge tanto do ponto de vista masculino? Quando olhamos para os grandes clássicos da fantasia nos deparamos com Tolkien, George R. R. Martin e Brandon Sanderson. Homens consagrados com seus livros de fantasia protagonizados majoritariamente por personagens masculinos. E quando vemos a ascensão e consagração de autoras, com personagens femininos dentro do gênero literário, se inicia um movimento de descredibilização das obras e debates sobre a inferiorização dessas narrativas. Quero explicitar que opinar sobre uma leitura não é o problema, jamais seria. Estamos falando de uma atividade que requer interpretação e senso crítico. Toda leitura deve ser lida de forma critica e todo leitor deveria formar uma opinião sobre o que foi lido. Analisar as percepções sobre essas leituras também faz parte do processo de leitura, principalmente vindo de pessoas públicas e criadores de conteúdo literário.
Outra análise que eu convido a ser feita sobre os livros de romantasia, é com relação ao conteúdo adulto. Quando alegam o desconforto, justificando a presença de cenas explícitas de teor sexual, é importante considerar se o desconforto parte do leitor por uma predileção pessoal em ler histórias sem teor sexual. Ou o desconforto se instaura no leitor, por estar consumindo uma história que narra um romance com teor sexual no ponto de vista feminino, gerando a ausência da objetificação do corpo feminino e a quebra de uma fantasia erótica, existente mais no imaginário da mente masculina do que nos livros escritos por mulheres. Essa parte da discussão em específico me parece extremamente problemática. Geralmente em livros escritos por homens não existe uma crítica tão ferrenha a essas cenas sensuais ou com conteúdo sexual explícito. Muitas vezes vemos autores usando violência para construír um passado para a personagem feminina, onde fica subentendido que situações como o estupro trariam força e superação para o personagem. Aqui eu deixo uma recomendação muito legal do texto escrito pela Maria Fernanda de Lima sobre O esturpo como recurso narrativo na série Outlander caso queira evitar spoilers da série e livros ou sinta que o tema é sensível, não recomendo a leitura da matéria. Para exemplificar, deixo três citações e a reflexão sobre como é naturalizada algumas "licenças poéticas" para alimentar o ponto de vista masculino de uma cena com conteúdo sexual explícito:
"Dava para saber que aquelas mulheres tinham tramp stamps assim como dava para saber que aquele homem tinha a jeba de um cavalo e disparava esperma com mais força do que uma locomotiva e com mais velocidade do que uma bala. Se uma virgem se sentasse no vaso depois que esse cara se masturbasse, ia acabar grávida. Provavelmente, de gêmeos." Stephen King em Mr. Mercedes.
"Olhava com admiração para seus seios inchados e a curva de sua barriga, e Dany conseguia ver a forma de seu membro viril fazendo pressão contra as calças de couro de cavalo, sob os pesados medalhões de ouro do cinto. Foi até ele e o ajudou a despir-se. Então, seu enorme khal a pegou pelas ancas e ergueu-a no ar, como se ela fosse uma criança." George R.R Martin em As crônicas de gelo e fogo.
"Mãe, estou vendo sua calcinha, pensa Brady, e cuida do problema o mais rápido possível. Tem vaselina no armário de remédios, mas ele decide não usar. Ele quer que arda." Stephen King em Mr. Mercedes.
Compreender que o ponto de vista que narra a história gera um impacto no leitor, promove percepções que vão de indiferença até a identificação com o personagem ou situação. Dando não apenas profundidade ao que lemos, como também uma base na construção de um pensamento crítico sobre a leitura. Quando vemos uma movimentação sobre a importância de diversificar as nossas leituras, é justamente para refletir sobre como diferentes autores conseguem criar diferentes narrativas com base no universo de conhecimentos que fazem parte de sua formação pessoal. Partindo desse pensamento, compreendemos que cada autor ou autora vai trazer para as suas obras parte da sua realidade ou percepção de mundo, e dentro da diferença de gênero já apontada nessa publicação, eu consigo identificar uma diferença abismal entre livros com teor sexual escrito por homens e livros escritos por mulheres.
Acredito que esse tema por si já renderia uma publicação a parte. As críticas recorrentes aos livros de romantasia segue majoritariamente sendo devido ao teor sexual. Em livros como ACOTAR ou Quarta asa já vi sendo apontado como puro erotismo, e após ler ambos me pergunto se li os mesmos livros ou uma versão censurada por simplesmente não concordar com o alarde que tem sido feito sobre o tema. Apesar de ter sim conteúdo explícito, não é o foco da narrativa e me lembra muito o que eu já vi em outros livros antes de toda essa movimentação sobre romantasia. Não sei se tem a ver com a onda de conservadorismo que tem afingido a nossa sociedade e uma prática estranha envolvendo café com religião, ou se estamos observando uma onda de misoginia, onde o estranhamento de protagonismo feminino e a liberdade sexual causam desconforto. No pior cenário, eu julgaria que existe um pouco dos dois, e devemos manter a atenção nos discursos que se escondem por trás das opiniões. É importante lembrar que as vezes você não é o público alvo daquela obra e tá tudo bem.
Cheguei a me questionar se existia a necessidade de criar um novo termo para classificar esses livros, tendo em vista que os títulos rotulados como romantasia podem pertencer a subcategorias preexistentes. Mas no final das contas me rendi ao meu lado arqueóloga que adora classificação e categorias. Desde que não exista um demérito nas obras ou o discurso de constrangimento para quem consome a subcategoria, não acredito que exista de fato um problema com a adoção do termo.
Quero deixar o convite para um debate saudável e completamente respeitoso nos comentários dessa publicação. Vocês também perceberam essa questão sobre os livros de romantasia? Sinta-se livre para compartilhar recomendações de conteúdo sobre o assunto ou uma leitura muito legal dentro do universo da romantasia.
9 comments
Nunca concordei tanto com um texto. Para mim, o mais triste dessa discussão sobre romantasia, ou fantasias com cenas de sexo é o fato de que muitas mulheres estão falando mal de outras por lerem. Homens: que falem, não ligo. Mulheres, fico triste pela invalidez de um gênero que foi feito para nós!!!!
ResponderExcluirOi Gai! Realmente esse julgamento é bem chato, e infelizmente se a gente parar pra pensar, isso não é algo exclusivo da romantasia. Tenho visto bastante pelas redes sociais essa soberba literária e a criação de uma estética culta sem reflexões das obras, um esvaziamento por uma estética. Tem bastante coisa para a gente refletir sobre e acho que é meio inevitável fugir disso, sempre vamos voltar nesse mesmo ponto.
ExcluirOi Van, tudo bem?
ResponderExcluirSendo sincera, acho o termo um pouco akward. Não vejo muita necessidade de chamar assim algo que poderia ser simplesmente "fantasi" com romance.
Dito isso, não fico acompanhando as tretas nas redes sociais e as críticas aos livros mencionados, então tô um pouco por fora do debate. Novamente, sendo sincera, tenho poupado a minha energia em relação a BOs do universo literário, porque sinto que muitas dessas críticas partem de um local de falsa superioridade intelectual.
De qualquer forma, seu texto ficou ótimo!
Beijos,
Priih
Infinitas Vidas
Oi Priih! Eu também fiquei com essa questão com o termo, não acho necessário criar um termo quando já temos "fantasia", mas meu lado que ama classificação não acha ruim ter essas subcategorias para ajudar os leitores a encontrar leituras de forma mais assertiva, tal como tempo as tropes literárias. O que me preocupa é que estamos generalizando as obras e tudo escrito por mulher e tem romance vira romantasia, mesmo que a obra pertença a outra subcategoria, fica meio nichado e com isso ainda temos uma leva de pessoas que desmerecem essas obras. Eu compreendo totalmente a falta de energia com as tretas literárias, geralmente eu também fico fora disso, mas esse assunto ficou ocupando um espaço grande na minha cabeça e após conversar com alguns amigos resolvi botar para fora aqui no blog xD
ExcluirFico feliz que tenha gostado do texto <3
Sua reflexão foi a mais legal, completa e imparcial que eu sobre isso, então por favor continue trazendo esses assuntos pra cá ❤️
ExcluirNo TikTok parece que as pessoas estão sempre querendo "ganhar" a discussão sabe? E ninguém entra em temas polêmicos como o machismo envolvido. Ansiosa pelas suas próximas reflexões!
Oi! Eu já tinha lido seu texto pelo celular esta semana e só faltava vir aqui. Eu acho cansativa essa classificação romantasia, hoje são tantas as classificações criadas que acabam deixando o leitor confuso. Para mim vai ser sempre fantasia com algo a mais, que pode ser romance, mitologia, etc. O texto está ótimo e entendi bem seu ponto de vista.
ResponderExcluirBjos!!
Moonlight Books
Oi Cida! Fico feliz que tenha gostado texto. Eu sou um pouco fã de categorias, então não me queixo tanto sobre a existência delas, mas sim os usos. Acho meio desnecessário, mas já que existe e popularizou, não sou eu que vou ficar contra o uso da categoria ou surgimento desse subgênero. Mas fico atenta ao uso e os deméritos que tenho visto serem direcionados aos livros e autoras que recebem essa categoria.
ExcluirOi Vaneza, gostei muito da sua reflexão e concordo com seus pontos. Pra mim, causa certo desconforto cenas muito explícitas, então prefiro evitar apesar de não deixar de ler um livro só por elas estarem presentes. Tenho percebido esse movimento desqualificando as romantasias e aposto na misoginia como uma das razões. Desde quando a JK Rowling disse que escondeu seu nome ao escrever Harry Potter e revelou que fez isso a conselho da editora, senão os meninos não leriam, ficou claro que é um gênero dominado por homens escrevendo para homens. Hoje as mulheres já estão mais presentes e expondo seus nomes nas capas, o que está sendo feito então? Colocando em dúvida a qualidade de todas essas obras. Acredito que existam livros bem escritos e mal escritos como em qualquer outro do gênero e acho essa generalização bem injusta. Sobre o termo específico, não acredito que seja necessário. Com ou sem romance, fantasia e seus subgêneros já são abrangente o suficiente.
ResponderExcluirAté breve;
Helaina (Escritora || Blogueira)
https://hipercriativa.blogspot.com (Livros, filmes e séries)
https://universo-invisivel.blogspot.com (Contos, crônicas e afins)
Oi Helaina! Fico feliz que tenha gostado do texto. E realmente é muito problemática essa misoginia que vemos a tantos anos no mercado editorial (em todos os lugares né, mas o assunto é livros então nos atemos aos livros). Agora que você mencionou eu lembrei dessa história da J.K Rowling e apesar da extensa lista de problemas envolvendo essa autora, ainda vemos que ela na década de 90 estava passando por isso.
ExcluirSinta-se livre para deixar um comentário! Caso não apareça a caixa de comentário, recomendo abrir a página no formato web/desktop