O que existe perto do coração selvagem? | Resenha sem spoiler
07 abrilMeu primeiro contato com a Clarice Lispector foi na oitava série, a professora de literatura passou um trabalho valendo nota sobre o livro A hora da estrela e eu li, mas não compreendi. Eu sabia que estava lendo o livro, não importava quantas vezes relesse o parágrafo ou a página, eu não compreendia as entrelinhas. Apesar do final chocante, eu sabia que havia lido aquele livro cedo demais. Aos 14 anos não conseguiria compreender a totalidade da coisa. Essa constatação não me desanimou, apesar de já ser uma leitora ávida na época, sabia que não estava preparada para todos os livros, mas um dia estaria. Convivi por anos com a vontade de compreender Clarice Lispector, não apenas ler. Não queria passar pelas páginas sem entender onde a autora queria chegar, sobre como suas protagonistas são totalmente fora dos padrões, o que isso significa hoje, e o que significou na época que foi publicado.
Após uns bons anos de reflexões e acima de tudo vivências, me senti pronta para encarar os livros da Clarice Lispector, e como sou uma fã de desafios, ler apenas um livro dela não teria graça. Logo, me desafiei a ler todos os romances dela em ordem de publicação. Escolhi essa edição que foi lançada para celebrar o centenário da autora, as capas são partes de quadros pintados pela própria Clarice, sim, ela também pintava. Dos romances, perto do coração selvagem foi o primeiro a ser publicado, em 1943, quando a autora tinha apenas 23 anos. O que possivelmente surpreende a todos os leitores é pensar como alguém com 23 anos conseguiu escrever um livro tão humano e consciente, abordado o sentir e o ser com tanta intimidade como se houvesse vivido mil vidas. Essa intensidade marca a Clarice como autora, mesmo quem não teve contato com os livros, sabe que existe uma complexidade intensa por trás de suas obras. Não leve isso como desestimulo literário, mas como um desafio, onde ler vai te puxar pelo braço e levar por caminhos inimagináveis, podendo te levar para pensamentos tão selvagens quanto os sentimentos e o coração.
Joana é a protagonista do livro, e em uma narração em fluxo de consciência, o leitor fica como expectador da vida e dos pensamentos da Joana. Não é simplesmente a Joana narrando o livro, é como se a voz da consciência narrasse a história para o leitor, contando para nós e para a Joana as percepções do mundo, os sentimentos e as dúvidas da Joana desde a infância até a vida adulta. Os capítulos, intercalando entre infância e vida adulta, vai mostrando aos poucos como a Joana cresceu, acima de tudo, como ela viveu. Desde pequena, e talvez isso cause um estranhamento inicial, a gente tem acesso à personalidade da Joana, que poderia ser tida como no mínimo excêntrica. E essa personalidade toma conta do fluxo de consciência, e uma vez que o leitor consegue se conectar a esse fluxo, é mais fácil começar a entender as inquietações da Joana.
"Joana é uma personagem intensa e pautada pela complexidade. Múltipla. Quer e não quer. Pode tudo. Mas não pode. Segue. Mas não chega. Deseja. Mas não deseja mais. Não seria esse o próprio risco do intrincado bordado da vida, com avanços e recuos?"
Nádia Battella Gotlib para o posfácio na edição de 2019
Outro grande estranhamento nesse livro pode ser a sensação de falta de uma história. Quando estamos acostumados a ler livros de gêneros como fantasia, ficção científica entre tantos outros gêneros, temos a construção de uma história, os personagens são apresentados, o universo da história também é exposto e a partir daí temos um mistério, um assassinato, um objetivo que vão guiar o desenvolvimento dos personagens. Em Perto do coração selvagem nós temos uma mulher crescendo, amadurecendo e tentando compreender os próprios sentimentos, tendo uma ânsia voraz de viver e sentir que muitas vezes não tem nada a ver com as expectativas que a sociedade impõem a uma mulher.
Apesar de ser um livro curto, eu tirei um bom tempo para ler. Não que a leitura em si fosse chata ou difícil, mas a Joana é um personagem tão intrigante que me fez várias vezes fechar o livro e dedicar longos minutos em total reflexão sobre o que eram aqueles sentimentos, como a ânsia de viver pode se transformar em uma jornada solitária e introspectiva e como a liberdade vem com um preço que só você pode determinar se é caro demais ou barato. Muitas vezes me vi em algumas questões do livro, no vínculo com a água e a praia enquanto um lugar de reflexão e constatação, os pensamentos envolvendo o casamento e a maternidade, e até mesmo o emaranhado de pensamentos sobre si e o mundo envolta. Talvez uma grande diferença entre nós duas seja o filtro das experiências, enquanto a Joana quer viver tudo em sua totalidade até que eventualmente seja consumida, eu tenho meus limites e quase uma paz de espírito em saber que não preciso viver todas as experiências, apesar de fazer questão de viver tudo o que me proponho a viver com a maior intensidade possível.
Para mim, perto do coração selvagem é uma história sobre uma mulher que buscava uma consciência imensa de si, indo contra uma lógica imposta por uma sociedade em que as mulheres precisam crescer abrindo mão da individualidade e abraçando uma forma de existir que põe outras pessoas e sentimentos em foco. Joana não abriu mão, ao mesmo tempo que buscava pela liberdade de ser e sentir, acabou caindo em um espiral onde o que se quer é desconhecido e maior que a própria noção de liberdade, mostrando que estar livre é estar só, e estar só não é necessariamente o que se deseja no fundo do coração. A autora sempre foi associada à literatura clássica, e nos últimos tempos tenho visto uma associação entre uma estética de mulheres "loucas" e as obras. Clarice Lispector não é leitura para mulheres loucas, é para quem tem coragem de encarar o emaranhado de emoções que o ser humano é, sem medo de olhar para dentro e encontrar o estranhamento de existir. Acredito que isso é estar perto do coração selvagem.
8 comments
primeiro, adorei a foto no começo do post, achei mt chique, conceitual, pinterest! vc com 14 anos não entendendo o livro e eu 10 anos mais velha passando pelo mesmo.
ResponderExcluiruma amiga minha me mostrou uma passagem de um dos livros da clarice e eu me identifiquei tanto que eu peguei pra mim e coloco em todo lugar, inclusive no rodapé do blog. sabe quando perguntam "qual frase te define?" foi assim que me senti quando ela me mostrou. mas, eu fui ler o livro e tive muita dificuldade em entender as entrelinhas. é complicado pra mim entender o abstrato, as metáforas, analogias, enfim... daí deixei o livro pra um dia que eu estiver disposta a prestar 3x mais atenção nas palavras.
eu tenho uma edição dessa que as capas são os quadros pintados por ela, mas não sabia dessa info, amei saber! um dia ainda vou fazer como vc, pegar os livros e ler por ordem (e documentar no blog, claro)
abraços, nanaview ⭐
Oi Nana! Sou suspeita para falar da foto xD
ExcluirEu acho que entender os livros da Clarice é sobre vivências e um dia do nada estar pronta para digerir a história, só com 27 estou conseguindo embarcar nessa jornada. Eu já tinha percebido o rodapé do seu blog, o livro Um sopro de vida ainda está longe para mim no desafio. Quero muito ver a sua jornada lendo Clarice! Acho que você vai gostar.
Parece interessante! quando o vir à venda, vou tentar comprar e ler!
ResponderExcluirBjxxx,
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Espero que goste da leitura, Teresa!
ExcluirOi Van, tudo bem?
ResponderExcluirEu amei essa indicação e já coloquei na wishlist.
Tenho alguns livros da Clarice, mas ainda não me desafiei a ler. Fiquei bastante encorajada a fazer isso depois da sua resenha. ♥
Você já leu As Parceiras, da Lya Luft? Também é sobre o amadurecimento e a vida de uma mulher, e me marcou profundamente. Talvez você goste, depois de ter curtido tanto a história da Joana.
Beijos,
Priih
Infinitas Vidas
Oi Priih! Eu ainda não li As Parceiras, dei uma pesquisada e achei muito interessante! A dinâmica familiar meio caótica, meio traumática me lembrou um pouco o livro O Deus das pequenas coisas (que eu amei!). Vou colocar sua indicação na lista!
ExcluirOie! Clarice é um tópico sensível pra mim, de longe minha autora preferida da vida. A Clarice realmente parece um cometa que passou pela terra, tendo um canal direto com algum plano que só temos acesso em momentos muito especiais como nos sonhos... Comecei a ler ela por A Hora da Estrela também, mas já adulta, também tomei aquele susto que a literatura Clariciana nos dá! Meu preferido é Água Viva, fico feliz que tenha gostado e adorei seus comentários sobre este, confesso que nunca li, mas já está na minha lista!
ResponderExcluirwww.petalasdeagosto.blogspot.com 🐡
Oi Ayla! Eu tô muito ansiosa para chegar em Água Viva! Tem um amigo meu apaixonado por esse livro e acha que eu também vou gostar muito. Espero que você leia Perto do coração selvagem para a gente fofocar sobre :3
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